Há algum tempo, participei de um concurso de escrita. Infelizmente, não consegui ficar entre os finalistas, mas fiquei feliz com o resultado do texto, considerando que só tive dois dias para escrevê-lo. Então, coloco-o aqui para leitura:
Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, de forma casual, como se falássemos do tempo. Tirou toda e qualquer possibilidade de resposta, pois sabia que eu estava atrasada para o trabalho. Apesar disso, eu paralisei com o prato na mão por alguns segundos, deliberando entre brigar ou fugir, até ouvir uma voz interna dizer “anda, depois do trabalho você resolve isso”. Então, deixei o prato na pia e disse no tom mais neutro que consegui:
— A gente conversa a noite.
Eu era assim: trabalho acima de tudo. Com pais divorciados, vivi na pele o que acontece quando a mulher não é financeiramente independente. Minha mãe nunca terminou os estudos, pois casou-se muito cedo. Viveu para casa até que meu pai foi embora e teve que batalhar muito para criar os dois filhos depois da separação. Ela sempre dizia: “nunca deixe de trabalhar por um homem”, e “nada é mais importante que a carreira”. Eu cresci ouvindo e acreditando nisso. Quando estava namorando, já deixei bem claro que nunca deixaria de trabalhar, mesmo se engravidasse. Meu marido ou futuro ex-marido, já não sei mais, parecia compreender.
O que teria motivado sua súbita vontade de me deixar? No trabalho, tentei não pensar nisso e concentrar-me nas pessoas, mas era difícil. Sempre que um casal chegava, já pensava “por quê? Por que relacionamentos acabam?” Estava nesse estado de inquietação, atendendo telefones e pacientes que chegavam para o consultório de Dr. Foyle. Trabalhava como secretária de sua clínica, um pequeno conjunto na movimentada Avenida Paulista. Estava lá há 6 anos e o trabalho era como minha primeira casa. Passava mais tempo lá do que em casa, mas isso nunca fora um problema.
Meu marido dizia que admirava mulheres como eu, decididas e independentes. Será? Alguns namorados haviam terminado comigo justamente por causa disso. Eu era independente “demais”, não precisava de um homem, diziam. Queria dizer que eu não precisava mesmo de um provedor, mas sim de um companheiro, porém as palavras sempre ficaram presas em minha garganta. Hoje percebo que era orgulho. Não queria admitir que precisava de alguém, pois isso me deixaria vulnerável, fraca. E fracos não têm lugar no mundo.
Minha mãe trabalhou em todo tipo de emprego para nos sustentar. Fez questão que eu e meu irmão estudássemos e tivéssemos uma formação, por isso, eu não aceitaria ser um troféu. Não fui criada para ser um acessório de homem. Eu deveria ser autosuficiente. Casei, sim, mas só porque encontrei um companheiro, ou achei que tivesse encontrado.
Conheci meu marido no curso de datilografia. Não foi amor à primeira vista. Ficamos amigos e dessa amizade nasceu o amor. Éramos parecidos, tínhamos os mesmos gostos e hobbies, compartilhávamos a mesma visão de mundo. Ele era diferente de todos os homens que conheci antes, mais maduro e seguro de si. Era exatamente o que eu precisava. Agora, o que faria sem ele?
O trabalho passou como um borrão e voltei para casa. No caminho, desacelerei algumas vezes, com medo da conversa que me aguardava. Eu sabia que não adiantava postergar o inevitável, mas quem sabe ele não havia mudado de ideia? Essa possibilidade tentava acalmar meu coração palpitante, mas eu também sabia que isso era improvável. Meu marido não era do tipo impulsivo. Não, ele pensou bastante antes de sugerir me deixar.
Em frente à casa, parei. Quase bati na minha própria porta, mas me contive. Coloquei a chave na fechadura e girei, já com falta de ar e o coração na garganta. Quando entrei, percebi que tinha sido estúpida. Ele não estava mais lá. Fora embora, levando todos os seus pertences. Na sala, o videogame havia sumido. Corri para o quarto só para ver metade do armário vazio. Até o box e a pia do banheiro, tudo estava pela metade. Não entrei em um desespero frenético como imaginei que ficaria. Só pude sentar ali mesmo no piso frio do banheiro e chorar. Senti-me patética, mas chorei compulsivamente até ficar exausta e deitar no chão frio.
Estava completamente abandonada e sem esperanças. Por quê? A pergunta martelava em minha mente. O que eu fiz de errado? Ou o que deixei de fazer? Teria me enganado? Será que ele dizia uma coisa, mas na verdade queria outra? Os pensamentos foram se tornando cada vez mais nebulosos até que adormeci. Acordei menos de uma hora depois, rangendo os dentes de frio, e fui me arrastando para a cama.
Acordei com o despertador tocando como quem acorda de um pesadelo. “Pronto” pensei. “Hoje é um novo dia e tudo não vai ter passado de um sonho”. Mentira. Ao abrir os olhos e ver o travesseiro vazio ao meu lado, senti uma pontada no peito. Não poderia me dar ao luxo de viver a dor do abandono, por isso, levantei e fiz o café como de costume. No meio do processo, lembrei-me que não fazia isso por mim, fazia isso para ele. Afinal, meu trabalho começava a tarde. Era ele quem saía de casa cedo. Tive raiva de mim mesma, raiva dele, mas decidi tomar o café como se fosse apenas mais um dia normal. Ia ignorar sua ausência até que ela desaparecesse, parasse de doer. Um dia ia parar, afinal o tempo cura todas as feridas.
Enquanto tentava me convencer disso, ouvia a voz da minha terapeuta dizendo: “não é assim que funciona”. Ignorei. Não me importa como funciona. Eu preciso continuar. Apenas. Nunca precisei de homem nenhum, nem para me sustentar, nem para servir de consolo. Sempre me bastei. Continuo me bastando. Sou uma mulher moderna, autossuficiente. Relacionamentos acabam. Acontece nas melhores famílias. É assim.
“Encare suas sombras” continuou a voz. Estou encarando, pensei comigo. Estou encarando a realidade, pois em breve as contas chegam e eu preciso trabalhar. Ainda bem que não tivemos filhos. Isso foi algo que sempre tive claro. Não queria fazer meus filhos passarem pelo mesmo que eu passei, então, nunca quis ser mãe. Talvez isso fosse apenas mais uma forma de me isolar e, no meu isolamento, fingir que me basto.
“O ser humano é sociável” disse a voz. Não, isso não se aplica a mim. Eu sempre fui antisocial. A psicologia precisa avançar mais, afinal quem sabe agora o ser humano já evoluiu a ponto de não mais depender de interações sociais? Acho que é isso. A resposta é que não preciso de ninguém. Mentira. Com quem vou conversar agora sobre as séries do Netflix? Sobre livros? Quem vai me dar um lenço quando eu chorar assistindo a um filme?
Ao menos, foi uma separação tranquila, sem choro, sem escândalos. E pelo menos, ele avisou, não foi embora para comprar pão e nunca mais voltou. Certo? Errado. Não existe “pelo menos”. Quero matá-lo, quero vingança. Desejo que ele sofra, assim como estou sofrendo. Onde estaria agora? O que estaria fazendo? Como foi que aquele cretino teve a coragem de me deixar assim, sem mais nem menos?!
Ouço o telefone tocando e corro para atender, mas não é ele. Claro que não. Por que me ligaria? É apenas engano. Penso em ligar, mas diria o que? “Por que fez isso comigo?” como uma carente? Não, eu tenho orgulho próprio. Até demais, talvez. Pode ser que meu orgulho tenha acabado com meu casamento, afinal, quantas coisas não deixei de fazer ou falar por causa dele? Não, estou apenas tentando justificar o injustificável. Ele é o errado, eu sou a vítima. É isso.
Quem eu quero enganar? Sei que tenho culpa, mas não posso admití-la. Não agora. Essa é a hora em que posso sofrer, chorar, xingar. Não posso gritar com ele, mas tenho o direito de ter pena de mim, ao menos por um dia. O desgraçado nem permitiu que eu brigasse. Toca o telefone de novo. É a operadora. Resolvo mandar mensagem. Nada. Sem resposta. O que eu esperava? Uma explicação? A razão do abandono? Eu devia saber que ele não me daria, afinal, meu pai também nunca me deu. Eles são assim: covardes.
Pensando agora, como pude me envolver com alguém tão parecido com meu pai? Será que estou em um ciclo vicioso? Será que fui programada para ser abandonada? Bobagem! Provavelmente só preciso trabalhar, como minha mãe fez. E a vida segue, como sempre seguiu.
Curtir isso:
Curtir Carregando...